Dizer que esse filme é a “versão DC” dos Guardiões da Galáxia (I e II, 2014 e 2017) seria reduzir James Gunn a um mero reprodutor de ideias fechadas, e até retirar dele o mérito artístico e intelectual que vem demonstrando em suas aventuras com filmes do gênero, pois não é isso o que acontece. No entanto, é inegável que O Esquadrão Suicida consegue trazer um mix muito interessante de ação e humor que já foi, de fato, visto na equipe do Senhor das Estrelas e que não havia sido alcançado pela DC até agora (exceto talvez um pouco em Shazam), e que é, por isso mesmo, traço marcante de Gunn.
O diretor apresenta aqui algo que não me parece ter sido experimentado no histórico de filmes heroicos da DC: muita (mas muita mesmo!) violência, sadismo e boca suja, mas tudo isso sabiamente controlado pela inteligência do roteiro e pela porção bem-humorada da pena de Gunn. Sabemos que essa escola vem de longa data (vale ver a influência de “Os doze condenados” 1967 aqui, e conta muito sua experiência com Tromeo & Juliet”, de 1996, e os já mencionados Guardiões 2014, 2017). Também é satisfatório saber que possivelmente há um dedo, ou quando menos um olho, de Zack e Deborah Snyder na produção executiva do longa. Essa aproximação, embora seja difícil dizer até que ponto houve interferência de Zack, já é praticamente uma garantia de boa produção. Mas isso nos levaria a outras discussões. O que me arrisco a dizer, por enquanto, já que mencionei Snyder, é que o sucesso desse novo “O Esquadrão Suicida” enfraquece bastante o movimento “#AyerCut”, já que tudo que eu gostaria de ter visto na primeiro filme dos condenados já aparece espetacularmente aqui, nessa fantástica obra de James Gunn.
É fácil lembrar, por exemplo, as ligeiras – e frustrantes – tentativas de gracejo em outros filmes recentes de herói da Warner (vide piadinhas do Batffleck) mas nenhum alcança, nem de longe, a boa dosagem dessa nova produção dos suicidas, muito menos o filme anterior, de 2016. Na verdade, quem estiver imaginando que verá aqui uma continuação ou mesmo correção de rota do primeiro Esquadrão Suicida, banha-se profundamente nas águas do equívoco: trata-se de um novo filme, com uma nova identidade, mais robusto, mais ousado, mais sangrento, mais sádico, e muito mais próximo da promessa contida no próprio título da obra. A propósito, as pistas dessa reconstrução identitária dos anti-heróis da DC já começam aí: o acréscimo do artigo definido masculino como a única diferença de nome em relação ao primeiro filme (sem o tradicional “II” ou subtítulo que indicaria sequência) é, de saída, um recado em alto e bom som: “desconsiderem o desastre de David Ayer! O verdadeiro esquadrão está aqui”.
Aliás, esse adjetivo (“suicida”) bastante sugestivo no nome fantasia da equipe de condenados de Amanda Waller parece finalmente corresponder aos acontecimentos do enredo, coisa que foi pouco aproveitada no primeiro filme. Dois novos grupos reunidos pela chefona da DC (Arlequina, Sanguinário, Pacificador, Caça-Ratos 2, Bolinhas, Nanaue, Sábio, Dardo e outros) recebem a difícil missão de invadir um prédio super secreto na ilha da América do Sul chamada “Corto Maltese” e destruir arquivos confidenciais sobre pesquisas do Pensador (Peter Capaldi) com o clássico vilão conquistador estelar Starro. Claro que nada poderia sair de acordo com o planos das equipes, e isso é a principal fonte de humor e violência do longa. O fato é que agora, James Gunn não poupa sangue: correndo o risco de cair em spoiler, me atrevo dizer, ao menos, que esse novo filme realmente mostra que um aceite do contrato com Waller pode mesmo significar prenúncio do suicídio.
Há, no entanto, pequenos problemas de roteiro que eu não gostaria de ter visto em um filme que é tão cuidadoso em muitos aspectos. Arlequina: a esta altura já é indiscutível que Margot Robbie nasceu para dar vida à Harley Quinn nos cinemas. É possível mesmo arriscar a dizer que a Warner e a DC ainda não conseguiram aproveitar ao máximo o talento da atriz, mas a competência de James Gunn parece estar mudando esse cenário. Se ela já havia conseguido se destacar mesmo no fiasco do primeiro Esquadrão Suicida, agora se coloca definitivamente como um perfeito caso de ilusão referencial entre atriz/personagem: ela se encaixa tão bem no papel que ao imaginar um rosto, um corpo e uma voz “reais” para a Arlequina dos quadrinhos, já temos a impressão de que estes só poderiam ser os de Margot Robbie, e todas as outras alternativas que não ela nos pareceriam inadequadas.
Mas isso tudo são elogios, e o problema? Um pequeno excesso de facilidade. Não que isto seja de fato um problema grave no contexto geral do filme, mas pareceu muito pouco afinado com o teor da obra, por exemplo, que Arlequina tenha sido misericordiosamente poupada na cena de tortura e pouco desafiada na fuga do cativeiro (cena que se destaca no trailer). Na verdade, considerando que não é do feitio desse roteiro ter misericórdia dos personagens, trazendo exacerbação de brutalidade com mortes extremamente violentas, muito estranha que uma pequena arma de choque tenha sido a ferramenta usada por um ditador latino para extrair informações da Arlequina, e que seu torturador tenha se deixado derrubar tão facilmente para que ela conseguisse se livrar das algemas. Considerando a inteligência, a violência, a sagacidade, e as habilidades de luta de Harley, eu esperava mais dificuldade nessa primeira etapa da fuga. De resto, se não considerar a “perícia” (ironia) dos inúmeros soldados que erram os tiros nela a um metro e meio de distância, o ritmo da cena até que esteve à altura da personagem. Ignorando um pouco esses probleminhas de conveniência, no mais, o filme é dela.
Idris Elba não fica muito para trás, e é de admirar que mesmo sendo a primeira vez que vemos o ator interpretar Sanguinário no universo DC, e que ele está lado a lado com Margot e John Cena (Pacificador), ele consegue entregar um desempenho e destaque como líder melhor que o que vimos no Pistoleiro de Will Smith (perdão, Will, sigo achando que não é sua culpa). Na verdade, John Cena também surpreende pela excelente performance, e é importante destacar aqui que é justamente o comportamento de seu personagem no filme, o Pacificador, que pode reabrir os olhos da DC para uma maturidade sequencial que até então só pudemos ver nesse universo com a trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan e nas recentes experiências já amplamente conhecidas de Zack Snyder.
A trilha sonora é bastante ampla e merecem destaque especial aqui o refinamento artístico no tratamento sonoro geral do filme, principalmente de John Murphy, além da inserção de canções temáticas especialmente selecionadas para determinadas cenas, que trazem até mesmo performances de artistas brasileiros (Karol Conká, Gloria Groove e Marcelo D2). Todo o desenho sonoro é brilhante e não desaponta quando o assunto é dinamizar as cenas e cobrar do espectador toda a atenção possível para cada detalhe dos eventos verbovisuais do filme. Não obstante, a mim me incomodou bastante a desproporção sonora de alguns dos sons diegéticos, a ponto de eu ter que tapar parcialmente os ouvidos com fones durante o filme, e isso não parecia ser somente um problema de volume nos controles da sala IMAX, já que as falas dos personagens estiveram em boa medida do início ao fim, assim como a música.
As demais sonoridades (de ambiente, de locomoção, tiros, pancadas, dentadas [de Nanaue, Stallone] e outras manifestações sonoras internas à ficção), no entanto, soaram terrivelmente desproporcionais na mixagem: um carro que, após capotar, finaliza o giro com um último impacto a 10 centímetros do chão teve intensidade acústica de uma queda de 10 metros (e a lista de casos parecidos é enorme). Justiça seja feita, esse não é um problema exclusivo deste filme: a Dolby ultimamente tem pesado a mão em volume e profundidade nas trilhas e isso parece se dever muito mais à vontade de mostrar serviço do que corresponder fielmente às necessidades sonoras de construção do sentido dos filmes. É uma pena, porque apesar de não atrapalhar consideravelmente, torna a experiência auditiva, no geral, mais desagradável do que proveitosa. Felizmente, a criatividade da composição mantém firme o interesse por cada segundo do início ao fim.
Em suma, esse filme é o que a DC deveria ter feito desde que começou a pensar live-actions dos seus heróis: corajoso, brutal, desaforado, inteligente e com a medida de descontração apropriada à história. Embora ainda me desagrade bastante o pouquíssimo interesse por planejamentos globais que a Warner vem impondo aos diretores, fato que nos deu problemas seríssimos de cronologia e de construção e inserção de personagens no universo, O Esquadrão Suicida de James Gunn parece compensar esse desapego indo ainda mais além para transformar a pouca conexão com os filmes anteriores em algo muito mais inteligente: independência. Mesmo sendo uma “sequência”, esse é um filme que definitivamente não precisaria do anterior e nem de qualquer outra produção recente da DC para fazer sentido. O único fato que nos faz lembrar que existe o Esquadrão Suicida de David Ayer é que Gunn não perde tempo contextualizando o espectador. O filme é, nas boas medidas do possível, autossuficiente. Verei de novo.
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