Esse paralelo entre a evolução da família e da tecnologia evidencia as diferenças da forma de uso da internet ao longo das diferentes épocas. Anteriormente, as pessoas a usavam para registrar momentos, combinar e marcar encontros (...) existia esse elemento coletivo e de proximidade. Atualmente, as redes sociais se tornaram os principais canais de comunicação entre as pessoas, mas que essa proximidade em comunicação instantânea gera uma gigantesca dependência do mecanismo virtual que resulta em uma distância física problemática. O filme, em sua poesia, se utiliza bastante desse comportamento antropológico frente as tecnologias, veremos isso mais a frente como.
(Isso é tão Black Mirror, né? É sim. Mas é melhor.)
Como sabemos, o filme narra todo um background da história da família de David Kim (John Cho) logo no início: um pai que perde sua esposa para uma doença e passa a criar a filha sozinho. Notavelmente John é como muitos pais conservadores:
1 – Tenta passar segurança a terceiros sobre a qualidade do seu relacionamento em família (vive dizendo que está tudo bem para o seu irmão sobre sua relação com sua filha);
2 – Tem dificuldades em diálogos sinceros, abertos e emotivos (dificuldade de expressar o que sente, mesmo através da internet);
3 – Trabalha bastante para sustentar a filha da melhor maneira possível, mas nem sempre tem bons momentos pessoalmente. (notavelmente estabelece infinitamente mais contato a distância com a filha do que pessoalmente, podemos ver isso quando ele dá advertências por meio de chamadas em vídeo, apresentando que o mesmo não tem muitas oportunidades de fazer isso pessoalmente);
4 – Baixo conhecimento em tecnologias, principalmente em redes sociais, levando a ser enganado na internet por truques básicos de falsidade ideológica.
E vejam, este é o nosso protagonista neste filme de suspense e “web triller” com um fortes críticas sociais atuais e características emotivas de ambiente familiar. John, que não era nada expert no mundo digital, passa a investigar o que aconteceu com sua filha depois que ela sumiu por 37 horas. As armas do nosso herói para bancar o detetive virtual são apenas aquelas que dispomos em nosso cotidiano: as redes sociais, nada mais que isso.
Primeiramente, temos um susto da quantidade de informação que podemos encontrar nas redes e que, talvez, sejamos parte desses que se expõe demais nesse ambiente. Sem sair de casa, John conseguiu não só interrogar, mas conferir a veracidade das respostas, de dezenas de pessoas em diferentes localidades. Descobriu o que elas gostavam, onde moravam, onde estavam na noite do sumiço, as relações com a sua filha, como ela se comportava em diferentes ambientes e etc.
O primeiro grande choque de John é o forte poder do anonimato da internet. A grande habilidade que todos tem de aparecer e sumir, ser qualquer pessoa, de qualquer lugar e depois simplesmente não estar mais ali. A realidade no mundo virtual é facilmente mutável e certas palavras tem significados diferentes, como: amigo. Nada disso faz parte do mundo onde John foi criado, o que torna pequenas obviedades uma grande confusão mental em momentos de estresse.
O primeiro grande choque de John é o forte poder do anonimato da internet. A grande habilidade que todos tem de aparecer e sumir, ser qualquer pessoa, de qualquer lugar e depois simplesmente não estar mais ali. A realidade no mundo virtual é facilmente mutável e certas palavras tem significados diferentes, como: amigo. Nada disso faz parte do mundo onde John foi criado, o que torna pequenas obviedades uma grande confusão mental em momentos de estresse.
“VOCÊ ERA AMIGO DELA NO FACEBOOK!”
“VOCÊ A CHAMOU PARA A FESTA!”
A estrutura do filme não muda por um instante, ele mantém firme a forma de conta-lo: sempre pela internet. A lealdade a narrativa é do começo ao fim. A sonoplastia e os saltos temporais fazem com que ele seja intenso e nada cansativo. O mais surpreendente do roteiro que além de ser emotivo na dose certa, ser veloz e contagiante, é o fato que tudo realmente estava lá o tempo todo. Não aparece nenhum Deus x Machine, nada, nenhuma informação nova. John consegue juntar todas as peças do quebra cabeça com apenas as informações que ele nos oferece ao longo do filme e isso é fantástico.
Nós observamos a evolução daquele tiozão que não sabia o que era um Tumblr virar um verdadeiro detetive das redes. E isso nos atrai, porque todos nós temos um pouco de detetive/stalker dentro de nós nesse mundo das webs. Todo mundo, em algum momento da vida, já procurou sobre a vida de alguém nas redes. E isso almejando o maior número de informações possíveis sem querer ser descoberto por isso (anos de formação na Universidade Internacional do Orkutcom MBA no Facebook). No início do filme nós achamos graça da falta de proficiência do nosso herói, a forma como ele testa os programas, mas, no fim, ele nos dá uma verdadeira aula nesse campo investigativo da web.
E o gostoso de observar essa evolução é a forma como ele enxerga o mundo da internet, porque, de fato, aparenta ser um mundo mágico, distante e completamente diferente. Por não saber como se portar no início, ou o que fazer, ele cai em diversas armadilhas desse ambiente social que pode ser, por vezes, absurdamente caótico. Nós já conhecemos os vários perigos, John não. A temática da internet acompanha a odisseia da investigação e o ambiente tem forte papel no antagonismo, o filme se utiliza de todos os recursos do mundo digital:
1 – A relatividade da velocidade das coisas e a quebra do espaço tempo. A comunicação entre as pessoas; o poder de “voltar no tempo” e conseguir observar uma cena feliz do passado que nunca mais se repetirá; a tecnologia sempre como elemento de enorme auxílio, mas também de dependência, muitas vezes, emocional.
2 – A forma do comportamento humano ao se comunicar na internet: como digitamos, o que queríamos ter digitado (...) fazer um enorme textão e depois desistir. Muitas vezes apagamos tudo e colocamos algo bem mais simples e vago. Ou, nem colocamos nada. A falta de expressão das palavras que podem ser interpretadas de tantas formas e gera essa inquietação junto a uma ansiedade destrutiva.
3 – A internet é um novo mundo, com características únicas. Às vezes, há pessoas que não são elas mesma no mundo real, elas não fazem, nem falam, o que gostariam. Mas elas conseguem expor o “seu eu” profundo e sincero nesse ambiente virtual. Às vezes, o “mundo fictício da internet” mostra o real das pessoas que elas não mostram no mundo real. O anonimato, a terra sem lei, sem limites, deixa, de fato, todos confortáveis a tudo.
4 – Nesse mundo que, por muitos, é tratado com a mesma importância, ou até maior, que o nosso mundo real, aqui, vale tudo para ser “bem-sucedido” nele. Tudo para ser popular, ter atenção, ser visualizado, aceito. Nós observamos, junto a John, tantas coisas que vemos na internet no dia a dia que, aqui, junto ao nosso herói, compartilhando da sanidade dele por observar sua reação, nós notamos como as pessoas enlouquecem. (pessoas raspando a cabeça frente a câmera por visualizações, pessoas falsas fingindo ser amigo de alguém, ou estar triste, para ganhar likes);
5 –Você pode ser, da noite para o dia, famoso de uma forma que você não gostaria nem um pouco. Porque você pode estar sendo constantemente vigiado no mundo real e, fragmentos da realidade (vídeos, fotos) de sua vida podem ser feitas por terceiros desconhecidos e simplesmente cair na internet. Tudo isso se transforma em histórias incompletas, ou mentiras, que podem se tornar bastante famosas nesse mundo sem lei. O poder viral é absurdo.
Isso leva ao próximo item!
6 – A internet é um espaço onde não faltam juízes. E a maioria dos julgamentos são negativos para aqueles que eventos que, em recortes da realidade, viram uma sensação na web. As pessoas julgam, aumentam histórias, se posicionam sem saber o que aconteceu de fato, espalham mentiras, criam teorias absurdas supersticiosas a cada minuto. Um dia, John era desconhecido, simplesmente ninguém nesse mundo. No outro, o pior pai do ano, um pai maluco, agressor, irresponsável (...)
Esse último item leva a reflexão: quantas vezes já julgamos sem saber o suficiente? Aqui, estamos atrás da tela com John, sabemos seus erros, mas também seu amor e tudo que ele fez por sua filha... o que faríamos se não fosse um filme e se não conhecêssemos os passos de John? Seríamos mais um Juiz formado na Facebook University como vimos no filme?
Se o elemento família do filme gera uma reflexão sobre o que fazer por um filho no protagonismo de John, observamos isso nitidamente também no antagonismo com a detetive Rosemary Vick (Debra Messing). Ambos se sacrificam ao máximo, acreditando na superação de seus filhos: John, por acreditar que sua filha ainda está viva de alguma forma, e Vick, por pensar que seu filho pode ser menos inconsequente em seus atos ao longo de sua formação e assume protege-lo de todas as formas.
A odisseia do “web triller” narra esse duelo justamente entre o pai tiozão ingênuo sobre o mundo da internet adotando um caráter de detetive amador, contra uma verdadeira profissional maquiavélica. Se você está julgando os atos de Vick, tenha muito cuidado, provavelmente você estaria julgando John junto com a galera da internet no meio do filme se estivesse dentro dessa história!
A odisseia do “web triller” narra esse duelo justamente entre o pai tiozão ingênuo sobre o mundo da internet adotando um caráter de detetive amador, contra uma verdadeira profissional maquiavélica. Se você está julgando os atos de Vick, tenha muito cuidado, provavelmente você estaria julgando John junto com a galera da internet no meio do filme se estivesse dentro dessa história!
Por fim, o nosso mundo está tão doente psicologicamente, e o ambiente da rede é tão hostil que nós imaginamos variados finais para o que ocorreu com a filha de John. É difícil dizer que o filme é previsível. Pelos comportamentos da adolescente, imaginamos ao longo do filme que ela escapou atrás de um romance proibido, ou que ela tenha tendência suicidas e tenha tirado sua vida, ou que ela tenha caído no mundo das drogas (...) a nossa imaginação por conhecer o quão caótico é a internet, e como nossa sociedade está doente psicologicamente, principalmente, a nossa geração, nos leva a imaginar mil possibilidades ruins a pobre filha de John. E veja: ao longo do filme, imaginando essas possibilidades, não deixamos de estar julgando-a pelo que aparenta ter acontecido. Por vezes, caso o telespectador não saiba o tempo de duração do filme, nós achamos que o mistério está solucionado sem estar. Poderíamos ter caído na armadilha de Vick, talvez. Apesar de várias mancadas como pai ao longo do filme, e de ele reconhecer isso, juntar a fé às atitudes de investigativas de John nos leva a um último e brilhante questionamento:
Depois de tudo que John fez pela filha, depois de todas as armações de Vick (...) ele não entregou os pontos, continuou investigando e tendo fé que ela estava viva. Será mesmo que John não conhecia sua filha? Bem, algumas coisas certamente não, e isso fica claro no filme. Mas uma coisa é certa:
John sabia de coisas sobre a sua filha que só um pai, ou uma mãe, com um pouco de fé, saberia.
Ele estava certo. Ela estava realmente viva. Leila Domicio
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